uma reflexão sobre a corrida
O meu companheiro da corrida António Bento, teve este momento de inspiração e deu-me autorização para colocar aqui esse momento:
O que me faz correr
Sábado, 03 de Março de 2007
Ontem dei sangue. A pica trimestral, na esperança de um sorriso que desconheço e que imagino poder ajudar a nascer. Hoje treinei de manhã, 50 minutos com 3x1600m estupidamente cansativos. Só de tarde me lembrei que ontem tinha dado sangue. Só aí, gracejando, percebi o cardio lá bem em cima, com um estrondoso arrastar de pernas sem motivo aparente (atendendo aos tempos das séries, que me recuso a revelar). Esta foi a semana que se seguiu ao domingo em que rebentei com o meu recorde dos 10 Km por 22 segundos. Deixei-o em 47m41s. O cardio sempre lá em cima. Era dia de recorde e das duas, uma: ou ficava na estrada de rastos ou saía mesmo recorde. Era um objectivo para esta época.
Desde 2003 que tenho “épocas” de corrida. Mudei para melhor. Constipo-me menos. Já não sei o que são ataques de rinite alérgica. Diminuíram as mazelas na coluna lombar que me entrevavam temporariamente, apesar da natação 3x por semana. Posso desfrutar livremente do meu gosto em comer. O peso mantém-se igual há 3,5 anos. Aprendi a conhecer melhor o corpo (holisticamente falando). Se me sinto menos bem sei o que fazer para no dia seguinte estar bem – tenho mais ferramentas. Antecipo sinais. Enfim, sou mais saudável, vivo melhor. E ganhei mais uma fonte de prazer, de muito, muito mais prazer. Acordar pelas 6 da manhã para treinar ou, iniciar um treino longo de 1h30 a 2h (ou mais, dependendo dos objectivos) num domingo pelas 8h parece insano. Parece … mas é puro prazer. Como os prazeres não são comparáveis, nem se medem aos palmos, este é um dos meus.
E na corrida, ou logo após a corrida, há muitos momentos em que me sinto verdadeiramente bem, porque não dizê-lo: feliz! E quanto mais devagar corro, melhor me sinto e mais prazer tenho.
Nesta 4ª época de corridas descobri-o finalmente. Sem prejuízo de um ou outro momento em que é importante motivar o corpo a ir mais longe e bater um recorde pessoal, aprendi finalmente que correr devagar me deixa bem. Previne as lesões (pela 1ª vez consigo fazer uma época completa sem qualquer lesão). Desde Setembro já fiz 6 corridas (2 meias maratonas, 1 de 20 km e 3 corridas de 10 km). Faltam 2 para as 8 previstas.
No final de Março termino a época. 1 mês de repouso activo com natação e bicicleta. Regresso em Abril com um objectivo: a maratona do Porto. A minha 2ª. Após a memorável estreia em Dezembro de 2005 com 4h51m. Bastante aquém das expectativas que o recorde de 1h43m na meia maratona prenunciava, 3 semanas antes. Mas altamente pedagógica. Totalmente desfrutada na dor e no arrastar até à meta. Na luta contra aquele que seria o caminho mais fácil e até justificável: a desistência. Foram 42 km penosos de luta contra o adversário de dentro. Contra as vontades contraditórias que quilómetro a quilómetro iam mudando de cor. Terminei bastante feliz. Cortar a meta da 1ª maratona é um marco inesquecível. Percebe-se nesse momento que a marca final nunca interessa quando se termina uma maratona. A 2ª já espreita. Mas com outros objectivos. Para já um treino mais prolongado, com mais volume, menos intensidade, mantendo as 4 sessões/semana e uma de cross training/natação. Depois sem preocupações com marcas, embora haja um sino que toca levemente: “se fosse menos de 4h, que bom seria”. Sobretudo, desejando ardentemente que seja um caminho de prazer, em que os treinos mais longos de 20 milhas (32 Km) sirvam para reflectir, crescer e desfrutar do caminho, que nesta, como em qualquer viagem, é o que verdadeiramente fica como experiência. A experiência de uma maratona nunca se situa na marca final. Resulta, pelo contrário, do longo processo de treino, em quilómetros, em organização, em tempo e em exaustão.
Num parágrafo: correr dá-me controlo total, liberdade, momentos de reflexão a solo, prazer, puro prazer. Correr devagar permite-me tudo isto. Terminar uma sessão de treino deixa-me feliz. Não é uma obrigação.
Correr é uma forma de estar. Com objectivos de longo, longuíssimo prazo. Ao estabelecer como meta o bem-estar e o prazer, só posso ir aumentando a fasquia com a idade. Ao contrário de quando estabelecemos tempos e metas cronométricas, subjugadas natural e inexoravelmente pelo passar das luas. O meu grande objectivo é correr durante mais 40 anos (ou mais, considerando os actuais 37), sempre com mais prazer. Sempre com mais liberdade, num trajecto paralelo às rotinas do dia-a-dia, que permita oxigenar o corpo e a vontade.
Corro para continuar a correr. Corro devagar para não parar lesionado ou farto ou desanimado. Corro devagar porque sei que assim a probabilidade de parar é bastante menor. E consigo o controlo total e a liberdade suprema. E muito, muito prazer. Quanto mais devagar corro, mais o corpo gosta. E isso é, sem a mais pequena margem para dúvida, mais importante do que qualquer marca em qualquer meta. É algo que começa dentro e nunca termina. Apenas aumenta. E nunca depende verdadeiramente de factores externos. O que faz toda a diferença e permite controlar tudo e aspirar, em certos momentos, à liberdade total. Afinal, um passo para alguns momentos de felicidade.
a minha corrida
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